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O Caso Petrobrás e a Função Social da Empresa

Por Dr. Marco Aurélio Cunha

Utilizar a SEM para finalidades de interesse apenas da União, mas que não sejam relacionadas ao core business, ou mesmo utilizar a empresa como instrumento para de política pública – não é fazê-la cumprir sua função social, mas abuso de poder de controle.

A atuação do governo Lula à frente da Petrobras fez reacender a discussão a respeito do limite da atuação do controlador nas sociedades de economia mista (“SEM”), especialmente no que diz respeito à função social desempenhada pela SEM.

Manifestações como a do presidente Lula de que “a Petrobras não é apenas uma empresa de pensar nos acionistas que investem nela. A Petrobras tem que pensar no investimento e pensar em 200 milhões de brasileiros que são donos dessa empresa, ou são sócios dessa empresa” trazem à tona a discussão sobre até onde pode ir a atuação do controlador (a União) em busca de fazer uma SEM cumprir sua função social e onde se inicia o abuso do poder de controle.

A Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais) traz em seu artigo 27 normas deontológicas que norteiam a busca da função social pelas SEM. Nesse contexto, nota-se que a SEM exerce sua função social ao gerar empregos e promover condições de trabalho dignas aos seus empregados, com remunerações compatíveis ao mercado, promovendo diversidade e inclusão, respeitando e fomentando a biodiversidade e o cuidado com meio ambiente, recolhendo os impostos devidos e, no limite, implementando ações de responsabilidade social mediante a promoção de políticas de apoio às comunidades locais onde está inserida (especialmente quando diretamente impactadas por sua atuação naquela comunidade).

Dito isso, utilizar a SEM para finalidades diversas e que sejam de interesse exclusivamente da União, sua acionista controladora – como, p.e., utilizar uma SEM como instrumento para estimular/desenvolver indústrias específicas que, aos olhos da controladora, sejam estratégicas para o país, mas que não sejam relacionadas ao seu core business, ou mesmo utilizar a SEM efetivamente como instrumento para realização de política pública (p.e., subsidiando preços como forma de controle de inflação) – não é fazê-la cumprir sua função social, mas sim abuso de poder de controle, devidamente tipificado em lei.

A Lei das Estatais específica que o controlador da SEM tem os deveres e as responsabilidades do acionista controlador estabelecidos na Lei das S.A., e deverá exercer o poder de controle no interesse da companhia, respeitado o interesse público que justificou sua criação (art. 4º, §1º), assim como responderá pelos atos praticados com abuso de poder, nos termos da Lei das S.A. (art. 15). A Lei das S.A., por seu turno, específica (art. 117) que são consideradas modalidades de exercício abusivo de poder de controle (i) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social e levá-la a favorecer outra sociedade em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros, e (ii) promover a adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia.

Portanto, ao optar por abrir o capital de uma empresa pública ao investimento privado, tornando-a uma SEM, o governo toma, deliberada e conscientemente, a decisão de limitar a sua atuação no controle de tal sociedade, bem como de limitar o espectro de atuação da própria sociedade.

Uma empresa pública detida exclusivamente pela União até poderia, eventualmente, ser utilizada pelo governo como instrumento de fomento de indústrias estratégicas para o país (independentemente de visar o lucro em tal atividade) ou até mesmo de promoção de políticas públicas (como controle de inflação por meio de preços subsidiados), uma vez que, em última instância, refletiria um prejuízo exclusivamente ao próprio governo, que abriria mão dos lucros em benefício de toda a sociedade.

No entanto, a SEM traz outra variável à equação, que é a existência de capital e investidores privados. A decisão de admitir acionistas minoritários implica, necessariamente, na obrigação do governo sujeitar-se às normas que norteiam o exercício do controle societário previsto na Lei das S.A. e, mais recentemente, na Lei das Estatais, as quais protegem os investidores minoritários das decisões que visam atender exclusivamente ao interesse do controlador, e asseguram a obrigatoriedade da perseguição de lucro pela SEM.

Pegando o caso específico da Petrobras, conclui-se que a intenção do governo em exercício de utilizar a companhia como instrumento para fomentar determinadas indústrias nacionais (tais como petroquímica, de fertilizantes ou até mesmo a naval, a despeito, neste último caso, da previsão constante do artigo 65 da Lei 9.478/97), ou, ainda, para fazer política social subsidiando preço dos combustíveis, não pode e não deve ser caracterizada como uma gestão orientada a fazer a companhia cumprir sua função social, mas sim como exercício abusivo do poder de controle pelo governo nas modalidades, respectivamente, de orientação da companhia para fim estranho ao objeto social e adoção de decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários.

O governo em exercício nitidamente confunde (propositalmente ou não) a realização da função social com a utilização da Petrobras como instrumento para consumação das vontades do controlador. A prática desses atos são exemplos irrefutáveis de abuso de poder de controle, na medida em que visam atender aos anseios apenas do controlador, em prejuízo dos minoritários. E aqui independe se a empreitada tenha sido bem-sucedida ou não, pois essa seria uma análise com viés de retrospectiva, baseada no resultado. O simples fato de o controlador impor a realização de tais atividades deveria ser suficiente para configurar o abuso de poder de controle e, a depender do resultado, implicar na obrigação de reparação de danos aos acionistas minoritários.